segunda-feira, 6 de setembro de 2010

A Gente se Acostuma.



A gente se acostuma mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E porque à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes, a abrir as revistas e ver anúncios, a ligar a televisão e assistir a comerciais, a ir ao cinema, a engolir publicidade, a ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata de produtos.
A gente se acostuma com as besteiras das músicas, a contaminação da água do mar e se acostuma a não ouvir passarinhos, a não colher frutas do pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito que fazer, a gente vai dormir mais cedo e ainda satisfeito porque tem sono atrasado. A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
A gente se acostuma para poupar a vida, que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesmo.